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Seminário: Psicanálise e Planos de Saúde: Reflexões Sobre Intervenções Externas Na Direção Dos Tratamentos 2017

 

        Em 2006, ano em que a ANS – Agencia reguladora da chamada Saúde Suplementar tornou obrigatória para todos os Planos de Saúde a cobertura de atendimentos psicoterápico, não tínhamos ideia dos desdobramentos, consequências e impasses desta medida.

Passados quase 11 anos, muito pouco foi elaborado   sobre estas   questões, apesar delas comparecerem diária e insistentemente em nossa prática clínica. O seminário que apresentaremos hoje pretende formular e sistematizar uma série de perguntas que temos feito ao longo destes anos, de forma desordenada e nem sempre isenta. Queremos refletir sobre os efeitos das condições que nos são impostas sobre o trabalho que realizamos, na certeza de que esta reflexão nos trará elementos clínicos importantes  para melhor conduzirmos os tratamentos.

Uma primeira, mais aparente e concreta consequência desta medida, foi o aumento significativo da demanda por estes atendimentos. Pra termos uma idéia, até 2006 tínhamos um ambulatório muito pequeno, composto por  uma pequena equipe  que atendia cerca de 60 pacientes adultos. Aos poucos fomos ampliando e diversificando nossos atendimentos e hoje temos também o atendimento a crianças, adolescentes, famílias e casais. No total são atendidos por mês, uma media de 500 a 600 pacientes por uma equipe composta de cerca de 40 terapeutas.

A ampliação e diversificação dos atendimentos não só em nossa Instituição mas também em outras clínicas, sem dúvida são efeitos positivos da medida tomada pela ANS que possibilitou o acesso a tratamentos psicoterápico de significativo número de pessoas que, sem esta medida,  jamais teriam esta oportunidade. Outro efeito positivo foi o aumento de postos de trabalho para muitos psicólogos que, apesar da quase sempre baixa remuneração, têm hoje a oportunidade de se dedicarem à clínica, o que nem sempre era possível anteriormente.  Por outro lado, o número de pacientes particulares é cada vez menor e a cada dia torna-se menos possível sobreviver atendendo somente estes pacientes. Observamos  uma crescente e paulatina  migração de pacientes dos consultórios particulares para clínicas que mantêm convênio com Planos de Saúde.

Queiramos ou não, esta é uma tendência que veio para ficar, o que não é de todo ruim pelas razões já expostas e também porque  tira-nos da solidão de nossos consultórios, e nos leva a criar espaços de trocas estudos e reflexões, seja informalmente no dia a dia, ao cruzar com um colega e dividir com ele as dúvidas e angústias de um atendimento a pouco realizado, seja em momentos específicos como nos encontros semanais dos grupos de supervisão, ou em sessões clínicas ou em seminários como este que ora realizamos.

Do ponto de vista qualitativo, temos de nos perguntar sobre o significado do crescimento massivo da demanda por tratamento psicoterápico. Será que aqueles que nos procuram necessitam de fato destes tratamentos e têm uma verdadeira demanda  ou estamos diante de um novo tipo de consumo: o consumo de psicoterapia? Parece uma pergunta sem sentido mas, ao nosso ver ela tem especial relevância numa sociedade consumista em que tudo se transforma em produto a serviço do  imperativo do gozo. O acesso fácil e “gratuito” à psicoterapia pode   transformar o nosso trabalho em  mais um bem de consumo a ser engolido, devorado e transformado em mais uma fonte de insatisfação e angústia. Para não cairmos nesta armadilha uma primeira e importante reflexão se faz necessária: que demanda é esta que se nos  apresenta? Qual o perfil destes demandantes? É possível criar as condições para que estes eventuais  “consumidores” possam   se haver com seu sofrimento para resgatarem   o sujeito do desejo dos  escombros de uma subjetividade esquecida,  alheia às questões essenciais da existência humana? As condições que nos são impostas pelos Planos de Saúde parecem dificultar ainda mais este  trabalho. Em primeiro lugar, devido ao fracasso do sistema de saúde pública, aqueles que conseguem obter os benefícios de um destes planos parecem constituir  uma “casta” se diferenciando dos outros mortais,  colocando-se em um plano superior, o que lhes daria o direito de, apoiados por este Grande Outro (aqui representado pelo Plano de Saúde) fazer  exigências por vezes absurdas, agindo de uma forma arrogante e impositiva. Estabelece-se assim  uma ameaça velada do tipo: “se vc não fizer o que me convém te denuncio”.

Constatamos portanto que a transferência inicial se dá com o Plano de Saúde e muitas vezes numa aliança que se reverte em ameaças. Nestas condições o estabelecimento do laço transferencial com o terapeuta/analista seria possível? Ou melhor como ele se dá e quais as possibilidades de manejo da transferência atravessada por este terceiro  que,  colocando-se  aparentemente fora, é de verdade o que dita as regras do jogo, interferindo diretamente em dois elementos de importância crucial para  este manejo  quais sejam: o tempo e o pagamento.

Depois das preciosas formulações de Lacan sobre a função subjetiva do tempo  diretamente relacionada com a lógica do inconsciente, como lidar com o tempo pré definido das sessões e dos tratamentos?  Este tempo que é burocraticamente determinado  pelos convênios e que se encaixa numa lógica radicalmente diferente do tipo “ Time is money” engessa o nosso trabalho, dificultando sobremaneira a direção dos tratamentos. Que saídas podemos encontrar para fazer valer o tempo subjetivo, o tempo de cada um?

No que diz respeito ao pagamento, sabemos que desde  Freud, ele  é considerado um elemento essencial na direção da cura. Isto porque na economia libidinal o sintoma tem a função de promover satisfação substituta : benefício primário e, ainda levar o sujeito a obter alguma vantagem em ficar doente: benefício secundário. Portanto, segundo Freud o sujeito lucra com o sintoma, o que Lacan chama de “gozo do sintoma”. Assim, na cura, o sujeito precisa perder o gozo do sintoma e deve pagar por isto. Nada mais estranho à lógica capitalista de investir (pagar) para ganhar. Em análise o sujeito paga pra trabalhar, paga para perder. Se não há algum pagamento, seja ele qual for, a análise não anda, o gozo do sintoma se mantém. O que fazer  quando o  pagamento é padrão e se dá de forma indireta : o paciente paga o plano que lhe oferece esta cobertura entre outras, não havendo uma relação direta entre este pagamento e o pagamento do terapeuta/analista? Parece que as questões relacionadas ao pagamento comparecem somente no ato de assinatura das guias de forma bastante indireta e de difícil manejo, revelando às vezes o lado perverso da aliança do paciente com os planos de saúde, que movidos pela lógica do capital, nos vêm apenas como prestadores de serviço. Assim, consideram apenas as sessões realizadas, não levando em conta que trata-se de atendimentos continuados e que o horário é  reservado àquele paciente, cabendo ao mesmo decidir sobre o uso que fará ou não deste horário, arcando com as consequências de sua escolha. Orientando o  paciente a não assinar as guias correspondentes às sessões que ele faltou os Planos de Saúde mais uma vez atrapalham ou mesmo impedem o andamento do tratamento pois desta forma se posicionam a serviço do sintoma.

Não há dúvida sobre a brutal interferência do controle destes dois elementos: tempo e pagamento na transferência e contra transferência que se estabelecem a partir desta realidade. Entretanto, nem tudo está perdido e estes impasses podem ser ultrapassados pela forma como terapeuta/analista se coloca face a estas questões possibilitando um manejo favorável da transferência. Há um importante trabalho a ser realizado previamente (entrevistas preliminares/tratamento de ensaio)  sobre o entendimento da demanda: ela existe de fato ou o sujeito ali está apenas por curiosidade ou para usufruir de um benefício?Se esta demanda existe, é possível elaborá-la no sentido de levar o paciente a formular uma pergunta sobre seu sintoma, colocando-o como um enigma a ser decifrado? Acreditamos que em muitos casos este trabalho seja possível.  Entretanto, para que consigamos até mesmo identificar ou não esta possibilidade,  e levarmos o trabalho adiante temos de estabelecer um enquadre preciso, que  define as condições que necessitamos para trabalhar, através de normas pontuais que devem ser esclarecidas e acordadas com os pacientes. Este é o primeiro passo para a elaboração de uma demanda que se dirija  ao terapeuta/analista viabilizando a implicação do paciente em um trabalho que possa operar sobre o gozo do sintoma.

* Texto apresentado no “Seminário Clínico” promovido pelo Anankê, sempre nas primeiras segundas feiras de cada mês.