Anankê – Promovendo Saúde Mental em Brasília desde 1991

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De Volta às Origens – O Anankê e Sua Filiação

 

   É com alegria que reiniciamos hoje os nossos Seminários Clínicos que neste semestre foram cuidadosamente preparados para discutirmos os fundamentos teóricos da Psicoterapia Institucional, face aos Desafios da Clínica Contemporânea. Este momento é deveras muito especial para nós do Anankê pois, após a travessia de intensa turbulência, especialmente nos últimos 3 anos, nos encontramos hoje num ponto em que as ameaças de naufrágio se dissiparam, pelo menos por ora. Então podemos respirar fundo e refletir teoricamente sobre o que fazemos e como fazemos nosso trabalho aqui no Anankê.

 

Passamos por grandes transformações nestes últimos tempos: um aumento significativo da demanda pelos nossos serviços (Ambulatório e Centro de Convivência), importantes alterações no perfil desta demanda e a criação da nossa Unidade de Intervenção em Crise – UIC.

No que diz respeito à nova configuração da  demanda, podemos afirmar que em sua maioria  ela não é mais composta de psicóticos. De cada 10 acolhimentos que realizamos no CC ou na UIC, ouso dizer que mais da metade deles referem-se ao que tem sido chamado de  novas subjetividades contemporâneas e suas patologias.  Estas já não têm mais como principal questão os conflitos tipicamente neuróticos, embora ainda insistamos em qualifica-las genericamente como neuroses graves,  quase sempre como histerias. Entretanto, suas problemáticas bem se encaixam naquilo que se convencionou chamar de Estados Limítrofes, marcados por traços cada vez mais melancólicos. Aí o que está em jogo em primeiro plano são questões relacionadas ao corpo e  ao narcisismo, em que as possibilidades de simbolização também são restritas. Tal mudança de eixo traz inúmeros questionamentos acerca dos nossos dispositivos clínicos e de nossa posição nestes tratamentos. A começar pela negação de sua especificidade, vez que nos agarramos aos   nossos tão caros conceitos psicanalíticos relativos à formação e desenvolvimento do psiquismo e às estruturas clínicas, ignorando estas  transformações, advindas das exigências da sociedade contemporânea que produzem novos mecanismos e novas formas de defesa.  Estas questões serão abordadas com profundidade nos próximos seminários.

Voltemos  então aos propósitos de hoje: De volta às OrigensO Anankê e sua Filiação. Sem dúvida alguma este retorno se impôs com a criação da UIC que nos colocou diante de questionamentos profundos sobre os princípios teóricos e éticos de nossa instituição, levando-nos a um total desamparo que colocou em risco a nossa própria sobrevivência.  Como acolher  e tratar os quadros agudos (psicóticos ou não) que nos colocam face a face com a crueza  e a brutalidade do Real, que nos paralisa e nos impede de encontrar palavras que se desdobrem em outras e nos permitam sair do estado paralisante de horror advindo desta concretude e deste  imaginário  de violência, riscos e morte? Sentíamos como se tivéssemos apenas o nosso frágil corpo e o nosso psiquismo congelado para criar  um anteparo a tudo isto e, então compreendemos as celas, as alas, as grades e os isolamentos da “Velha Instituição Psiquiátrica”. Aí então o horror foi ainda maior pois certamente a ela não queríamos voltar. Quase sucumbimos, e pensamos seriamente em desistir  da empreitada. Antes porém nos demos a chance de reabrir a nossa velha caixa de ferramentas e ver se o que lá existia nos traria algum norte, algum amparo, algum alívio. No fundo da caixa, bem escondido, lá estavam os fundamentos teóricos da Psicoterapia Institucional que sempre nos inspirou mas, que nunca a havíamos explicitado e neles  nos aprofundado. Tudo se passou como se a Teoria Psicanalítica fosse um saber totalizante que tivesse sido suficiente para nos guiar até então. Entretanto, não basta entender as estruturas psíquicas e seu funcionamento para sabermos como tratá-las. Especialmente no que diz respeito à psicose e a estas novas patologias em que o método psicanalítico tradicional dificilmente se aplica. Os dispositivos e as estratégias clínicas, bem como, a organização institucional que criamos e recriamos ao longo destes 24 anos, certamente não saíram somente de nossas lindas, brilhantes e criativas cabeças. Não inventamos a roda mas nos conduzimos como se assim fosse. A análise institucional que iniciamos antes mesmo da inauguração do Anankê, obviamente já traz  no seu DNA as marcas da Psicoterapia Institucional, uma vez que ela mesma é cria deste arcabouço teórico, o que foi  fundamental na construção de nossa identidade. Mas, por que não nos  aprofundamos  neste saber e não o explicitamos? Para nós analistas esta não é uma questão banal. A partir do momento que pude formulá-la muitas respostas surgiram mas, a mais importante acena para um tema muito frequente nos delírios de nossos pacientes que, pela impossibilidade de simbolizar questões relacionadas às suas origens e filiação constroem uma metáfora delirante de auto-engendramento. Assim também se passou conosco:  Delirantemente tínhamos que construir este saber sozinhos e do nada, isolando-nos de saberes já constituídos para não perder a ilusão de que o que se estava construindo era super, hiper original. Esta ilusão talvez tenha sido muito importante nos primeiros tempos para a constituição de nossa identidade mas, levou a Instituição a voltar-se apenas sobre si mesma e ainda hoje, vez por outra nos deparamos com esta tendência ao isolamento. Passar da ilusão para a desilusão implica  renunciar  ao  narcisismo e à onipotência, o que só é possível pela operação da  castração simbólica. Tarefa nada fácil e nunca definitiva.

É curioso observar como a maioria dos membros de nossas equipes estudam fora, fazem seus aprimoramentos, suas formações nisto, naquilo, fazem mestrado, doutorado etc. mas, dificilmente se dispõem a  estudar e teorizar juntos a nossa prática clínica. Apesar dos esforços empreendidos para tal fim, às vezes  parece impossível construir  um espaço institucional  no qual os diferentes saberes possam confluir e assim possamos constituir um saber próprio sobre a clínica que realizamos, nesta permanente dialética entre teoria e prática, entre o velho e o novo, pois sabemos que o original só surge da tradição, o que implica na operação de filiação simbólica é claro. É por esta razão que insistimos na criação e manutenção destes espaços como o dos Seminários e é também pela mesma razão que  estou feliz hoje com a presença de muitos membros de nossas equipes e de visitantes que com seus olhares mais distanciados, podem nos apontar outras facetas das questões que aqui debateremos.

Vamos então ao que interessa: O que é e como surgiu a Psicoterapia Institucional? Quais são seus principais conceitos? Como este arcabouço teórico nos auxilia no cotidiano institucional? Qual a leitura e a interpretação própria que fizemos deste arcabouço no decorrer destes 24 anos de existência? Como pensar sobre os impasses da clínica contemporânea a partir destes referenciais e produzir novas formulações que nos sirvam de ferramentas para enfrentar estes impasses? Evidentemente não pretendo e muito menos sou capaz  de oferecer respostas a todas estas questões. Apenas quero trazer algumas informações que possam nos auxiliar no debate das mesmas.

 

Breve histórico – O que se convencionou chamar de Psicoterapia Institucional, iniciou-se em 1940 com a ida de Francois Tosquelles, psiquiatra catalão ligado a importantes intelectuais,  que refugiou-se na   França para escapar do franquismo. Reconhecido em um campo de refugiados por um professor francês, foi indicado por ele para assumir a direção do hospital psiquiátrico de Saint Alban. Este hospital ficava  perdido nas montanhas, o que em tempos de guerra constituiu-se em vantagem. Logo  que chegou teve como primeira tarefa, cuidar para que os pacientes (entre 600 e 700) não morressem de fome. Para se ter uma idéia do que isto significava é importante mencionar que durante a segunda guerra morreram de fome  na França entre 50 a 60.000 pacientes psiquiátricos asilados. Em Saint Alban não houve nenhuma morte por este motivo. Isto por duas razões: em primeiro lugar  por uma atitude irreverente que salvou muitas vidas:  declarava-se que a metade dos pacientes eram tuberculosos, o que obrigava o Estado a fornecer-lhes um regime alimentar reforçado mas, principalmente porque  o hospital  era  aberto e então podia-se buscar alimento nos campos e nas montanhas estabelecendo importantes trocas com os camponeses da região. Podemos dizer então que tudo se originou a partir da necessidade primária de sobreviver à fome. Foi aí então que se criou o primeiro Clube Terapêutico Intra-hospitalar. Este clube surgiu da observação delicada e nada moralista de Tosquelles que, decidiu por potencializar os efeitos terapêuticos de um lugar de encontro  e trocas já existente. Ele transformou este ponto de encontro em um misto de  biblioteca e bar, onde se podia ler, conversar, comprar ou trocar bebida, cigarros, selos, cartas e ainda fazer teatro. Os pacientes eram diretamente implicados e responsabilizados  pela sua organização e seu funcionamento.

Pela sua localização Saint Alban tornou-se uma espécie de refúgio dos resistentes ao nazismo – intelectuais, surrealistas, militantes marxistas  e leitores contumazes de Freud e Lacan. Todos implicados nas transformações importantes que lá aconteciam. Pode-se dizer que processou-se aí uma verdadeira revolução na psiquiatria, com alterações importantes na  semiologia tradicional, resultante do estabelecimento de novas relações entre doentes e os que tratavam, entre enfermeiros e médicos, entre médicos e famílias etc.

Jean Oury, estudante de medicina que fazia residência em neurologia  no famoso hospital Saint Anne de Paris,   vai para Saint Alban em 1947 para  fazer residência psiquiátrica. Lá ficou por dois anos que segundo ele próprio  valeram por mais de vinte. Oury que posteriormente criou a clínica La Borde na região centro sul da França e se tornou a principal referência e o principal teórico da Psicoterapia Institucional, afirmava veementemente que Tosquelles foi o principal responsável por esta nova maneira de compreender e tratar o adoecimento psíquico pois, todas as idéias revolucionárias e os surpreendentes encontros ocorreram em Saint Alban.

Gostaria de ter tempo suficiente para continuar contando estas irreverentes e deliciosas histórias. Mas, não quero me alongar muito mais para que possamos debater sobre os impasses que temos enfrentado ultimamente.  A seguir, farei um breve resumo dos principais conceitos que estruturam a espinha dorsal da Psicoterapia Institucional.

Em primeiro lugar é importante salientar que Oury posicionava-se contra toda fascinação e idealização da psicose e contra toda tentativa de relegar a clínica a um segundo plano. Seu Encontro com Tosquelles e Lacan (com quem fez análise por 27 anos) foram definitivos na sua formação. Assim, caminhava na contra mão do modismo anti da época: anti-psiquiatria, anti-internação, anti medicação etc. Propunha não a eliminação do asilo mas sua recuperação enquanto lugar terapêutico. Ainda hoje estas duas  posições   se chocam: Por um lado os que defendem que a  ênfase  deve ser posta na transformação radical das relações sociais nas quais a loucura se encerra. Trata-se de um discurso  predominantemente político: defesa dos direitos de cidadania, respeito à diferença, ampliação das condições do exercício de sua condição de sujeito social etc. Por outro lado, aqueles que como  Oury afirmam a clínica da psicose como centro de interesse enfatizando a   especificidade do fenômeno psicótico e  interessando-se  pela metapsicologia, não negligenciando  a dimensão social e política mas, reafirmando que a psicopatologia não pode referir-se  somente a uma determinação social ou biológica, compreendendo-a como  expressão de uma forma peculiar do enfrentamento de um conflito intra psíquico. Afirmam ainda a psicose como um fato de estrutura psíquica, e que as transformações legais e institucionais não são suficientes para seu cuidado e tratamento.

Em busca de uma posição ética possível, Oury define como ferramenta conceitual básica no tratamento de psicóticos, o conceito de Alienação em sua dupla vertente teórica: Com Freud e Lacan –  fala-se em alienação pela  entrada do sujeito na ordem da linguagem e do desejo e com Marx- fala-se em alienação pela entrada do sujeito na ordem social. Afirma que o tratamento de psicóticos  na Instituição  exige a um só tempo: desalienação da Instituição (alteração das condições e da organização do trabalho, quebra da hierarquia, revisão das relações políticas e das trocas com a sociedade, análise da demanda, análise institucional etc) e, desalienação dos que tratam (colocação em jogo de seus desejos).

Alguns fenômenos e conceitos  psicanalíticos chaves relativos à psicose foram articulados à prática institucional e  foram fundamentais para a organização e a criação dos dispositivos clínicos. Entre eles destaca-se a Dissociação  presente  não só nos quadros psicóticos mas também nos quadros limítrofes. O sujeito dissociado estabelece uma transferência também dissociada que se dá sobre uma multiplicidade de pontos: pessoas, lugares, coisas, hábitos e linguagens. Para receber e sustentar esta transferência, necessita-se de várias pessoas e de diferentes lugares. O que deve  resultar na criação de uma vida institucional cotidiana que auxilie o paciente a aceder a um campo  onde possa redelimitar seu corpo, numa dialética entre parte e totalidade e,  participar do corpo institucional pela mediação de objetos transicionais – também chamados de objetos institucionais: ateliês, oficinas, grupos de encontro, grupos de psicoterapia etc. Assim, o tratamento  situa-se na dialética entre o geral e o específico, entre a coletividade e as singularidades dos sujeitos, sejam eles pacientes ou trabalhadores da Instituição nas suas diferentes funções, para colocar em jogo o  processo de reconstrução de si mesmo. O que vale também para as equipes e a instituição, donde se deduz que para tratar os pacientes, a instituição e suas equipes têm também que se tratar.

 

O Coletivo é o principal conceito criado por  Oury que o definia em poucas palavras como “máquina  para tratamento da alienação“. Na verdade a idéia do Coletivo é extremamente sofisticada e complexa, e foi desenvolvida por ele durante anos em seus seminários no hospital Saint Anne, que resultou em um livro com este mesmo nome, um dos poucos textos de Oury  traduzidos para o português. Abordaremos este conceito de forma sucinta e simplificada como: um sistema de suporte diversificado, e estratificado, capaz de sustentar investimentos parciais e variáveis, permitindo a criação de campos transferenciais  multifocais. Neste sistema, cada paciente cria uma espécie de constelação que reune um conjunto de pessoas e lugares que contam para ele. Para tanto é preciso uma grande liberdade de circulação que não se confunde com errância, posto que inscrita numa rede institucional significante e diferenciada, com vários pontos de amarração.

Destacamos como efeitos desejáveis do coletivo: o respeito ao outro,  o bom contato das equipes com os pacientes e dos pacientes entre si que não se deixa cair no vazio, pelo contrário, multiplique as possibilidades do dizer, seja lá o que for. A heterogeneidade não só relativa a diferentes espaços e pessoas mas também relativa a ambientes,  estilos de aproximação, de encontro, de contato com os materiais de cada lugar, da personalidade das pessoas que aí trabalham é fundamental na possibilidade de resgate destes sujeitos enquanto sujeitos do desejo, que é afinal o objetivo do tratamento.

Estas idéias e conceitos assim colocados no campo teórico parecem simples e de fácil concretização. Entretanto, o trabalho é árduo e interminável pois a prática requer questionamentos constantes.

Diante do que foi colocado e levando-se em conta nossa prática institucional, poderíamos debater agora  alguns impasses que têm de ser atravessados, quase que permanentemente,  para que nossa instituição  continue viva, saudável  e capaz de acolher e conviver com a angústia e o caos próprios da loucura.

 

* Texto apresentado no Seminário Clínico de 14/09/2015  promovido pelo Anankê. Estes Seminários acontecem nas primeiras segundas feiras de cada mês.