Indagações Acerca das Novas Formas de Atendimento em Saúde Mental
Ao longo de 13 anos de trabalho nós do Anankê temos nos indagado sobre uma série de questões sobre as quais não encontramos nem esperamos encontrar respostas definitivas.
Paradoxalmente, a angústia advinda deste não saber, desta consciência permanente da fragilidade e da precariedade de nossos modelos de intervenção, é o que nos provoca e nos permite ir em frente, instaurando-nos num processo de construção e desconstrução permanente de um saber coletivo sobre a vida institucional. Só assim tem sido possível lidar com intensos conflitos e crises que se nos apresentam freqüentemente, tanto pelos pacientes e famílias quanto pela própria equipe. Transformá-los em momentos de criação e mudança, em que as cristalizações, os automatismos de repetição e os emperramentos do fluir da vida sejam ultrapassados, é o que estamos sempre a buscar, muito embora nem sempre alcancemos este objetivo.
A convivência cotidiana com a loucura nos coloca frente a frente e de forma intensificada, com a radicalidade da experiência humana em que a luta permanente entre pulsão de vida e pulsão de morte, é o que promove o desejo, sentido único do viver.
Sem deixar de reconhecer que já avançamos muito naquilo que pode ser chamado de promoção da saúde mental, é necessário refletir cotidianamente sobre que saúde é esta que estamos a promover. Trata-se de uma saúde triste, asséptica, normatizada, homogeneizada, cronificada, adaptada socialmente, conveniente aos modos de produção e reprodução da sociedade? Ou trata-se de uma saúde viva, marcada pelas impurezas, pelas contradições, pelos conflitos que nos liberta do tédio da mortalidade?
Os nossos dispositivos de tratamento têm sido capazes de acolher e de promover a heteregeonidade, a multidimensionalidade e a polifonia que emprenham a vida, ou reproduzem a estéril tolerância neoliberal para com as diferenças? Estamos de fato dispostos a assumir e a intensificar a multiplicação das dimensões psíquicas, a abrir mão de uma fórmula, de um modelo? Somos capazes de enfrentar o desconhecido sem cairmos em atuações cegas, caóticas, fragmentadas e desestruturantes? O nosso saber pode nos orientar, nos dar referência sem que nos tornemos “burocratas da saúde”?
O quanto nos permitimos questionar se os nossos chamados “modelos alternativos” não são apenas empreendimentos sofisticados de alta tecnologia que desembocam na anulação do desejo, transformando nossas instituições em depósitos de estranhos personagens ou jardins de infância pedagógicos?
O quanto somos capazes de colocar sempre em jogo o nosso desejo e paixão pelo que fazemos, quando constatamos que a convivência com a loucura é muito mais difícil e complexa do que podemos admitir?
Como é possível sustentar nossa capacidade de imaginar e sonhar em um cotidiano em que a repetição, a monotonia, e por vezes a irrupção de episódios de violência nos assola?
Consideramos sempre os nossos pacientes como interlocutores de fato ou apenas personagens derrisórios de discursos estereotipados sem significado algum?
Somos sempre capazes de tratar um paciente como ser humano cujas dificuldades em nada diminuem a sua dignidade?
Todas estas atitudes ideais são mais fáceis de imaginar do que manter. O cotidiano institucional é mais árduo e mais complexo do que nos fala nossas teorias. Entretanto, não devemos recuar diante de tantas incertezas e dificuldades. A clínica da psicose nos coloca diariamente grandes desafios que só podem ser enfrentados coletivamente por uma equipe transdiciplinar de profissionais bem preparados, que encontram na instituição ressonância para seus questionamentos, liberdade e oportunidade de expressar livremente os afetos vividos em relação aos pacientes, à própria equipe e à organização em que trabalham.
Ademais, há que se dispor constantemente a teorizar a prática, ou seja, traduzir o que se faz a partir de uma certa referência. Há que se cuidar permanentemente da preservação da identidade de cada terapeuta, da multiplicidade de olhares sobre cada paciente, das possibilidades de sustentação de vínculos que nos confrontem diretamente com as dificuldades de viver de cada um. As descrições psicopatológicas que têm seu lugar e sua importância, não devem nos defender do mal estar do desconforto e da alegria que este contato vivo nos provoca.
A reflexão em reuniões e supervisões sistemáticas deve servir ao processo de elaboração conjunta que cria uma ruptura na repetição, dando lugar ao movimento libertador da fala. Estas reuniões devem permitir que cada um expresse suas reações diante deste ou daquele paciente, desta ou daquela situação. A volta sobre si mesmo pode entrever a espantosa normalidade daquilo que parece inicialmente ser a maior loucura. Assim, podemos manter vivo o nosso interesse pelo paciente com suas dificuldades e suas potencialidades, sem encerrá-lo numa rede fechada de diagnósticos e prognósticos definitivos.
É este trabalho permanente de reflexão conjunta que nos permite suportar as projeções e transferências maciças, tornando-nos capazes de nos surpreender e preservar nossa capacidade imaginativa sobre cada paciente.
É este “vai e vem” entre a teoria e a prática que promove um movimento dialético entre a individualidade e a coletividade, entre o dentro e o fora, entre o acolhimento, a proteção institucional e a autonomia e cidadania dos pacientes.
Enfim, para que a instituição mantenha-se viva com tudo aquilo de risco que a vida comporta, é necessário lidar com encontros e desencontros, ter abertura para criar possibilidades de circulação e de conexão com a vida coletiva, sem nunca deixar de ser um lugar protegido e acolhedor.
* Texto apresentado na “Mesa Redonda sobre as Novas Formas de Intervenção em Saúde Mental” no Centro Universitário de Brasília – CEUB em 17 de Maio de 2004, por ocasião das comemorações da “Semana da Luta Antimanicomial”.
** Psicóloga, Psicanalista, Diretora Clínica do Anankê.